terça-feira, 6 de setembro de 2011

Vidas guiadas pelos trilhos do trem (Parte III)

Casamento de Ramão e Noêmia Maxwell

Em 1972, o conto de fadas dos quatro irmãos foi bruscamente interrompido. Marcado, novamente, pelos trilhos. Por causa de problemas no coração, Noêmia então com quatro filhos, estava internada no hospital de São Gabriel. Ângela e os irmão aguardavam o retorno da mãe na casa de vizinhos quando foram surpreendidos pela visita do tio Raul, chefe dos trens da estação, junto com a esposa. A surpresa logo virou alegria quando os tios disseram que ia leva-los para a cidade. “Eles nos buscaram, nos disseram que estavam nos levando pra ver a mãe. Podiam ter nos dito que ela estava mau, que tinha ido pro céu. Mas, não. Disseram que nós estávamos indo ver a mãe. Nós fomos. E vimos ela morta.” Na época, os corpos eram levados para o velório e o enterro em um carro especial, com rodas de vagão, que funcionava a vapor como os trens. Ângela, na época com 8 anos lembra que esses carros eram muito parecidos com ambulâncias. “Nós fomos levar o corpo da mãe de São Gabriel pra Cacequi e o meu pai não foi. Ele não teve forças pra ver a esposa morta.” Durante todo o percurso, os moradores da localidade vinham até a estrada para ver quem ia ser velado. “Aquele povo todo parado na beira dos trilhos olhando pra gente enquanto o cortejo fúnebre ia passando. Eu e meus irmãos na frente, e o corpo da mãe atrás”.
Ramão, muito fragilizado pela perda da esposa e com a rotina extensa do trabalho na linha férrea, deixou os filhos aos cuidados dos avós Margarida e José Rodrigues, em Cacequi. Em 1976 a família se mudou para Cachoeira do Sul. Ramão então foi buscar os filhos, para voltar a morar com ele, mas Ângela, então com 12 anos ficou para ajudar e cuidar da avó quando ela adoecia. Vivendo longe do pai, dos irmãos e dos trilhos, que por tanto tempo estiveram presentes, a pequena jovem tinha muitas dúvidas sobre o seu futuro. “Será que um dia eu vou ser mãe? Eu ficava pensando” lembra a dona de casa, emocionada.
“O pai lá em Cacequi ficou 10 anos viúvo, quando eu ia visitar éramos só nós e ele. Depois casou novamente, com uma viúva também. Sempre chamei ela de Dona Geni. Ela foi muita boa, ela levantou o pai, fez ele voltar a acreditar na vida. O dois ficaram 19 anos juntos.”  Em Janeiro de 1996, a mãe de Ramão faleceu em Cachoeira do Sul. Seis meses depois, foi a vez de Geni. Sofrendo de asma, quando nervoso Ramão sentia uma dor aguda no peito e novamente não teve força para acompanhar os filhos na despedida das únicas pessoas que, por um breve período, assumiram o posto da falecida mãe.
Em 1984, Ângela conheceu em um baile de Cachoeira do Sul o jovem Erlei, aquele que seria o pai de seus tão sonhados filhos. “Eu vi ele dançando, dando uns pulinhos, igual um cabritinho. Quando ele perguntou se eu queria dançar, eu fui pular também. Pulei, pulei, pulei...”.  E estão pulando juntos até hoje. Dois anos depois, em 19 de Julho de 1986 se casaram. Logo em seguido tiveram o primeiro filho, Cristiano Maxwell da Silva, em abril de 1987. “Meu filho com dois meses e 17 dias fez a primeira viagem de trem”, lembra Ângela, com olhar saudoso e emocionado. “Minha segunda filha, Leticia, nasceu em 1995 e nunca andou de trem.” Os vagões com passageiros circularam pela última vez em 2 de Fevereiro de 1996.
Mesmo após a aposentadoria, em 2001, Ramão jamais deixou de falar sobre os trilhos, cheio de orgulho pelo pedaço da história gaúcha que ajudou a construir com as próprias mãos de apenas nove dedos. Aos oito anos de idade, enquanto olhava encantado para um avião (desde já, era apaixonado pelos meios de transporte) que cortava o céu de Cacequi, a porta de madeira da casa modesta bateu em seu dedo polegar. Por falta de atendimento médico, o dedo foi amputado posteriormente. Viúvo pela segunda vez, Ramão foi levado pela filha Nara para residir com ela em Porto Alegre. Mas, o desejo dele era morar com o filho homem. “Um dia a Nara foi na igreja e o pai pegou as coisas dele e se mandou. Quando ela chegou, nem rastro do pai”. Foi em Canoas, na casa do tão amado filho que Ramão faleceu aos 69 anos com uma forte pneumonia que complicou o quadro de enfisema pulmonar, em 2006.
Ângela recorda com saudade do tempo em que os trilhos do trem estiveram presentes em sua vida. Uma época de muito esforço, manchada por vários momentos dolorosos. “Eu adoro andar de trem. Até hoje se pudesse andaria.” Hoje, toda a malha ferroviária do Estado está nas mãos da concessionária ALL - América Latina Logística, que já não faz mais transporte de passageiros. “Será que aquela estrada de ferro ainda está lá? Um dia eu estava pensando como fazer pra chegar lá. Esse lugar deve estar lá, junto com as minhas lembranças.” Cacequi teve o desenvolvimento impulsionado pela rede ferroviária, hoje o município tem cerca de 16 mil habitantes. Inaugurado em 2001, o Centro da Memória Ferroviária, na extinta Estação Cacequi foi criado com o objetivo de guardar fragmentos desta história. O acervo do museu inclui desde indumentárias dos colonizadores e pioneiros até elementos da flora e da fauna, peças artísticas, livros-ponto com a hora de chegada e saída dos trabalhadores e objetos de uso pessoal dos moradores da época. Um pedaço dos Maxwell que se mantém vivo e a salvo do esquecimento.

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